Minhas vênias efusivas aos competentes magistrados, membros do MP com quem tanto aprendi, e colegas brilhantes - bachareis ou licenciados - sei que entenderão minha indignação!
Desembargador aposentado do TJESP
Bacharéis — os inscritos e os não-inscritos na OAB — encaram-se, hoje, no Brasil, com desconfiança. O mercado já está saturado de profissionais. Há um excesso de Faculdades de Direito, despejando semestralmente milhares de novos candidatos à advocacia; a maior parte, dizem os veteranos — não sei, porque não tenho contato com os recém-formados — sem condições culturais, pelo menos razoáveis, de trabalhar, sem desastres, em defesa de seus clientes. Outra conseqüência da "invasão" seria o desprestígio da advocacia.
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Para agravar a situação, a justiça brasileira está hiper-congestionada. Mal dá conta do volume atual de demandas. Com a "invasão" maior seria o volume. Anda não conseguiu, apesar de esforços individuais nesse sentido, livrar-se de uma morosidade que só poderá ser eliminada com penosas modificações legislativas. Difíceis, porque os beneficiários da lentidão, na área cível e penal, farão o possível e o impossível para que as coisas permaneçam como estão. As discussões sobre inovações serão teoricamente lindas, "em defesa do Direito", mas impregnadas de segundas intenções. O que interessa aos beneficiários da lentidão é que a justiça não mexa, tão cedo, em seus interesses. Todos elogiam a idéia de uma justiça rápida e eficaz, desde que ela não exija nada deles
Para compensar a imprevidência do Ministério da Educação, que parece não se importar — dizem os advogados inscritos na OAB — com o excesso de jovens procurando uma determinada profissão, a OAB conseguiu, no Congresso Nacional há vários anos, uma modificação legislativa que autoriza o Exame de Ordem, feito pela própria Ordem. Seria um "dique" contra a enchente de canudos, concedidos — dizem os profissionais veteranos — por entidades de ensino interessadas apenas em ganhar dinheiro.
Ocorre que, com o avançar do tempo, tais exames foram se tornando cada vez mais difíceis, trazendo aos reprovados a suspeita de que a dificuldade na aprovação originava-se mais na intenção de preservar o interesse dos advogados já inscritos na OAB do que no defensável objetivo de proteger a sociedade contra profissionais de baixa qualificação. A celeuma encaminhou-se ao judiciário, não havendo, por enquanto, no STF, a palavra definitiva quanto à inconstitucionalidade — ou mesmo ilegalidade — do Exame de Ordem, nos moldes com que é feito no presente momento. Os interessados em sua extinção argumentam, entre outras coisas, que tal Exame fere a isonomia porque a advocacia é a única profissão liberal, no Brasil, que condiciona seu exercício à aprovação por parte de profissionais interessados, em tese, na diminuição da concorrência.
Instalada a discórdia entre os "novos" e os "velhos" bacharéis, os "novos", incertos quanto ao resultado do conflito pelo Poder Judiciário procuraram, o Poder Legislativo para solução do impasse,. Em conseqüência, tramitam no Congresso Nacional algumas propostas que neutralizariam o argumento da quebra da isonomia: todas as profissões liberais passariam a exigir o equivalente do atual Exame de Ordem. Haveria Exame dos médicos, dentistas, engenheiros, economistas,etc. Provavelmente com um aperfeiçoamento, sem o qual o risco do "protecionismo" dos já praticantes passaria a existir não mais apenas na advocacia. Esse aperfeiçoamento consistiria em que a banca examinadora não seria composta apenas por profissionais da área. No caso dos candidatos à advocacia, por exemplo, a banca seria composta por advogados, professores de direito que não advogam, juízes e promotores de justiça. Com esse "oxigênio" de operadores do direito que não vivem da advocacia, não mais seria possível argumentar que os candidatos foram reprovados em razão de interesses ocultos, relacionados com preservação do ganho profissional. A novidade não seria absurda porque nos exames de ingresso na magistratura e ministério público os advogados já integram, há anos, asbancas examinadoras.
O tema em debate, do excesso de advogados fustigando, com petições iniciais, o já congestionado judiciário brasileiro, deve ser examinado também sob um prisma mais abrangente e mesmo "patriótico", se me perdoam a estranheza da palavra.
Qual a utilidade, para o Brasil, de se preparar tantos advogados, uma profissão intelectualmente atraente mas que gera pouca riqueza — pelo menos material — para a nação? Pode gerar para o profissional — quando gera... —, mas não para o país. Toda demanda judicial, principalmente quando longa, implica em uma paralisação econômica, uma "trava" que só se "destrava" quando a decisão e a execução transitam em julgado, fenômeno de difícil previsão em razão, da prodigalidade de recursos processuais. E sem previsões razoáveis, em termos de demora, os negócios não podem fluir, como seria o ideal. O dinheiro "paralisado" na infindável demanda ou não gera investimento ou, quando o faz, o beneficiado é a parte que não tem razão. Um desestímulo para o empreendedor bem intencionado.
Por que o Governo não estimula a nossa juventude mais para o estudo da Ciência, da Engenharia e da Tecnologia, em vez do Direito? Será que a China, a Coréia do Sul, a Índia e outros países emergentes —, que crescem bem mais depressa que o Brasil — "fabricam" bacharéis de direito na mesma proporção que o Brasil? Garanto que não. Pelo que deflui do noticiário internacional, a ênfase educacional desses países "vencedores" tem sido no preparo de engenheiros e técnicos de variados setores, notadamente da informática da informática
Poucos anos atrás, a Alemanha, já reunida, percebeu que precisava, com urgência, de técnicos de computação. Do contrário, não poderia acompanhar o ritmo veloz da globalização. Não podendo formar, de um momento para outro, os técnicos, na quantidade necessária, viu-se obrigada a 'importá-los". E sabem onde foram encontrá-los? Na Índia, na velha, "atrasada", mística e pobre Índia dos intocáveis, dos faquires, das vacas sagradas e dos macacos atrevidos que assim continuam porque sabem que não podem ser jantados. Hoje, indianos, hábeis na informática, trabalham, bem remunerados, em países de alta tecnologia. Tudo isso porque um estadista indiano de visão — salvo engano descendente de Gandhi — percebeu onde estava o futuro, em termos educacionais. Chegou a hora do Brasil fazer o mesmo. Encaminhar seu grande potencial de jovens para algo que lhes traga bons empregos, sensação de utilidade pessoal e ao mesmo tempo signifique um avanço tecnológico do Brasil.
Alguém dirá que nem todo moço gosta de matemática, química, física, biologia e informática. De acordo, mas essa aversão pode ser explicada, em parte, por uma falta de estímulo governamental no fomento do interesse dos jovens no sentido das ciências exatas. É nestas que os países — principalmente os emergentes — mais precisam apostar. E se, não obstante todo o estímulo, o jovem ainda preferir as chamadas Ciências Humanas" — porque essa é sua real vocação —, há campo para a utilização de seu talento em atividades que sejam, para a nação, mais lucrativas que as brigas judiciais, fontes de inimizades e inércia produtiva. O comércio exterior, a diplomacia empresarial, por exemplo. Preparar jovens poliglotas que dediquem-se a conhecer os meandros do comércio internacional, procurando bons clientes para nossas exportações.
O exagerado afluxo de jovens para o estudo do Direito, no Brasil, decorre, entre outros fatores, da esperança de ser juiz ou promotor, categorias bem remuneradas e com aposentadoria integral. Todavia, a proporção de candidatos para o número de vagas nessas profissões é desanimadora. Muitos jovens bacharéis ficam com a vida meio paralisada, só estudando — quando podem, se a família dispõe de recursos — anos e anos. É um estudo meio impregnado de depressão. Primeiro, tentando passar no Exame de Ordem. Depois, vencida essa etapa, tentando ingressar na magistratura ou no ministério públicos, com desanimadora desproporção entre candidatos e aprovados.
O invejável sucesso financeiro dos advogados no mundo anglo-saxão talvez explique, em parte, essa procura da advocacia como profissão. Seria uma possibilidade de enriquecer, não apenas viver bem. Paul McCartney, compositor, cantor, membro dos "Beatles", após seu último casamento, viu-se envolvido em uma aguerrida disputa conjugal de milhões de libras. Sua jovem e bela esposa — não obstante não tenha parte de uma perna, perdida em acidente de moto, antes do casamento — conseguiu, finalmente, segundo a mídia, um acordo, vantajosíssimo, na partilha dos bens (dele). Milhões de libras. Mas quando indagada por um repórter o que faria com tanto dinheiro disse que parte mínima viria para seu bolso. A maior parte ficaria com seus advogados. O que foi combinado no contrato de honorários, tem que ser cumprido. Nem o Estado, nem o órgão de classe, pelo que sei, interferem no assunto.
Nos EUA as ações de indenização por dano moral — ou, mais especificamente, por "dano punitivo" — permitem que em uma só ação de milhões o advogado possa enriquecer. O que vale é o percentual contratado com o cliente. E como o judiciário americano preocupa-se muito em evitar que as corporações voltem a aparecer no tribunal pela mesma falha, os juízes estabelecem indenizações aterradoras, que possibilitam vultosos honorários ao advogado vencedor. Isso fez com que afluíssem para a advocacia, naquele país, boa parte da juventude que, se não fosse pelo violento atrativo financeiro, se encaminharia para outras profissões. Esses abusos, porém, estão sendo progressivamente cortados, sob pressão de comércio, indústria e governo. Um câncer de pulmão, provocado pelo fumo, em uma tia que veio a falecer, vale mais que uma mega-sena brasileira.
Essa distorção da advocacia na América do Norte — que não foi imitada pela advocacia no Brasil, onde, de modo geral, os advogados têm um certo pudor quanto ao percentual que lhe cabe nas ações de indenização — está sendo progressivamente corrigida. Principalmente na área do erro médico. Isso porque com as condenações milionárias contra médicos e hospitais os médicos recusam-se a intervenções cirúrgicas mais arriscadas. Se algo der errado, ficarão endividados até os cabelos. Para cobrir esse risco existe o seguro de responsabilidade civil, mas como as condenações são absurdas, as seguradoras cobra um prêmio também absurdo. Tão alto que o médico trabalha vários meses por ano só para poder pagar o prêmio que lhe dará a cobertura. Considerando que o Estado, cada vez mais, por necessidade de apoio político, vê-se obrigado a proporciona segurança de saúde para a população em geral, e o Estado precisa também proteger os médicos, aumentando seus salários — o resultado é que a carga financeira para o Estado torna-se excessiva, tendo em vista o exagero das condenações judiciais. Em suma, foi o advogado beneficiário das condenações milionárias que, juntamente com o juiz, desencadeou o problema financeiro para o Estado, que agora toma providências legislativas para diminuir futuros prejuízos. Presumo que não demora uma "guinada" forte, nos EUA, no sentido de abrandamento no valor das indenizações apenas punitivas ou "exemplares"
Voltando ao tema principal, talvez mereça ser pensado um programa educacional, obviamente liderado ou apoiado pelo governo, no sentido de se permitir que bacharéis em Direito possam "migrar" para outras áreas mais técnicas — comércio, relações Internacionais, informática, por exemplo, sem perder o que já conquistaram antes como alunos de Direito. Aulas por um ano, ou pouco mais, numa escola de outra natureza. O estudo prévio do Direito sempre terá uma utilidade na sua formação. É bom que um "internacionalista" conheça também assuntos jurídicos porque o Direito está em toda parte, mesmo "invisível". Esse, porém, é um tema que os professores conhecem mais do que eu. Em vez de o bacharel recém-formado ficar em compasso de espera — meio deprimido, estudando um ou dois anos com a impressão de que vai ser reprovado —, ele freqüentaria esses cursos — que incluiriam línguas estrangeiras — sabendo, provavelmente, que teria novas oportunidades profissionais. E se, anos depois, quiser ser realmente advogado, juiz, ou promotor, poderia "voltar à carga' na realização da sua específica ambição, porque não perdeu seu título de bacharel.
Com a palavra os senhores educadores.
Revista Jus Vigilantibus, Terça-feira, 12 de fevereiro de 2008
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