Exame de Ordem já não atende necessidades da advocacia
por Sílvio de Salvo Venosa
O Exame da Ordem converteu-se em mais um vestibular para os alunos das faculdades de Direito do país. Tudo que se comenta sobre esse exame, suas dificuldades, seus índices de reprovação, a deficiência das instituições, tem criado ambiente sumamente negativo em nossas escolas de Direito sem exceção, inclusive nas mais tradicionais e que menos problemas apresentam na aprovação de seus alunos.
Essa situação tem acarretado, inclusive, um desvio inaceitável no ensino jurídico: nossas faculdades e nossos professores, pressionados pelo alunato, passam a orientar os currículos e as aulas para a aprovação no decantado exame, como num inaceitável retorno aos famigerados cursinhos pré-vestibulares. Aliás, os ditos cursinhos pré-vestibulares também evoluíram para preparatórios para o Exame da OAB, além de preparar para outros concursos nas carreiras jurídicas.
O que mais preocupa nesse quadro é mesmo o desvirtuamento do curso superior de Direito, que deve preparar um profissional para a vida, incluindo aí sua profissão. Nessa altura, o acadêmico passa a exigir que suas escolas e seus professores comentem os exames da OAB, tragam casos práticos, questões de algibeira que podem ser inseridas nas provas, fazendo tabula rasa dos ideais maiores dos cursos de Direito. Temos notado uma rejeição quase sistêmica às matérias fundamentais e absolutamente essenciais, que formam o pensamento do futuro profissional, como a introdução ao estudo do Direito, Direito romano, filosofia e sociologia jurídicas, antropologia, história do Direito, etc..
Na verdade, e aqueles que lecionam nas faculdades sabem bem ao que me refiro, quando o professor inicia uma alocução reportando-se à história, ao pensamento jurídico e aos fundamentos de um instituto, os alunos, com regra, perdem interesse na matéria e no mestre e dão preferência àqueles professores que, como os meros lentes do passado, se limitam a falar sobre prazos processuais e comentar questões e questiúnculas dos últimos exames. É claro que tudo é importante, esse o sentido da “universitas”, mas também é fato que essa distorção didática se faz sentir de forma patente com insistente generalização.
Com isso, estamos formando, salvo as exceções de sempre, gerações de bacharéis que não conseguem pensar no Direito ou pensar o Direito. Continuam presos às famigeradas questões de múltipla escolha e às questões práticas como se fossem argüição de provas. É evidente o risco que se corre com os reflexos que essa situação pode acarretar também nas outras carreiras jurídicas, não só no advogado, pois a formação é uma só.
Após tantas décadas no exercício diuturno de carreiras jurídicas, especialmente a de professor de Direito, temos refletido já há algum tempo sobre o Exame da OAB e creio que já é mais do que tempo de ser repensado. Temos sempre repetido o fato em nossas palestras pelo Brasil. Essa prova há de persistir, é evidente, não há que se pensar em sua extinção, mas o tradicionalismo do raciocínio do jurista tem impedido de tornar a atual fórmula cansada, repetitiva e que não mais tem trazido os resultados esperados, de amoldar-se à contemporaneidade.
Há que se pensar que a própria atividade da advocacia hoje é muito diversa daquela exercida poucas décadas atrás. Toda a estrutura do Exame da OAB, bem como o currículo da maioria das nossas faculdades até bem pouco tempo, sempre levaram em conta aquele advogado tradicional, estereotipado, o tribuno, o advogado de júri, o advogado litigante, que peticiona, contesta, recorre, agrava, etc. e freqüenta os tribunais. Ora, mesmo a advocacia tradicionalmente litigiosa, a solução de conflitos, tem todo um caminho prévio de conciliação, negociação e arbitragem, cada vez mais eficientes.
Por outro lado, o advogado vem atuando com crescente importância na área preventiva e consultiva. Há todo um universo da advocacia que não necessita mais do advogado litigante, daquele versado nos meandros do processo, na complexidade dos prazos, dos recursos, da nova ou antiga modalidade de execução. O advogado tem sua atividade cada vez mais extensa na área societária, contratual, cartorial, registral imobiliária, etc.. Mais avulta a necessidade de advogados consultores, aconselhadores, assessores, conciliadores não só nas áreas tradicionais do Direito, como também nos novos campos abertos às novas especialidades como franquias, direito da energia, das comunicações, das agências reguladoras, do petróleo, dos novos direitos intelectuais, o vasto horizonte que se abre com a internet, etc..
Daí porque nos pequenos, médios e grandes escritórios de advocacia, a grande maioria dos seus integrantes há décadas não firma uma petição inicial ou contestação, ou nunca firmou, dedicando-se à área preventiva, à consultoria e à atividade fiscalizatória inerente à profissão e nem por isso esses profissionais são menos advogados ou menos importantes ou menos bem sucedidos profissionalmente daqueles que se dedicam ao campo litigioso, que são chamados a atuar, quando necessário. O microcosmo representado pelos maiores escritórios de advocacia do Brasil, assim como do Exterior, é exemplo cristalino do que falamos.
Porque não pensar então, em dois tipos de Exame da Ordem, mantido o tradicional, para aquela advocacia referida, com ênfase no processo e nos direitos comumente versados em juízo; outro para a advocacia consultiva e preventiva, com acentuado ênfase para o direito empresarial em geral, cartorial, registral, contratual, etc.. Assim, teríamos duas categorias de advogado, abrindo-se um amplo campo e vasta oportunidade profissional a toda essa população reprimida e frustrada de bacharéis, que terá aberto um campo profissional tão essencial à sociedade quanto essencial é o advogado litigioso. Nada impediria, também, que o interessado fizesse os dois exames.
É evidente que essa mudança implicaria em renovação saudável de nossos cursos jurídicos, algo que também se faz sentir com premência. Assim, já é tempo de desligarmos-nos do culto feito ao processo e à litigiosidade que refletiu nossos cursos jurídicos desde nossas origens históricas e se acentuou no século passado. É fato que aqui expomos um tema para reflexão. Trata-se de um convite a pensar e a mudar, a fim de que outras soluções possam ser aventadas.
O importante é termos consciência de que a sociedade mudou, a aplicação do Direito se transformou, as nascentes especialidades jurídicas estão a desafiar novos profissionais e não podemos ficar arraigados a imobilismos. Definitivamente, a atual estrutura de Exame da OAB não atende mais plenamente as necessidades da sociedade e da advocacia.
Revista Consultor Jurídico, 31 de janeiro de 2008
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