CONSIDERAÇÃO INICIAL
O presente artigo tem a finalidade de traçar algumas linhas acerca da natureza jurídica dos conselhos fiscais de profissão regulamentada.
A importância do estudo se mostra presente, tendo em conta que as mais diversas profissões liberais têm seu órgão de fiscalização específico, que serve de sustentáculo para toda uma atividade profissional e que sem dúvida resvala a sua atuação na própria sociedade, pela repercussão da atuação dos respectivos profissionais.
A discussão acerca da natureza jurídica dos conselhos, que foi alvo de controvérsias durante um bom tempo, sem dúvida contribuiu para a falta de uniformidade na conduta, postura e funcionamento dos vários conselhos, o que trouxe severos transtornos para sua disciplina jurídica.
DA NATUREZA JURÍDICA
Os conselhos fiscais de profissões regulamentadas são criados por meio de lei federal, em que geralmente se prevê autonomia administrativa e financeira, e se destinam a zelar pela fiel observância dos princípios da ética e da disciplina da classe dos que exercem atividades profissionais afetas a sua existência.
Não raro, na própria lei de constituição dos conselhos vem expresso que os mesmos são dotados de personalidade jurídica de direito público, sendo que outras leis preferem apontá-los, desde logo, como autarquias federais.
Acontece que, mesmo com essa regulamentação clara, a natureza jurídica dos conselhos profissionais sempre foi alvo de controvérsias.
Várias são as naturezas jurídicas apontadas para os conselhos de fiscalização, como autarquias de natureza especificamente corporativa, autarquias especiais, autarquias sui generis, entidades paraestatais ou até mesmo entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado.
A natureza privatística dos conselhos profissionais ganhou força com a edição da Lei 9.649, de 27 de maio de 1998, na qual se previu que os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas serão exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa.
Essa lei, contudo, foi impugnada pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.717-6/DF, ajuizada em conjunto pelo Partido Comunista do Brasil – PC do B –, pelo Partido dos Trabalhadores – PT – e pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT.
Em sede de cautelar, no dia 22 de setembro de 1999, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, suspendeu a eficácia dos dispositivos impugnados [1] da Lei 9.649/98.
No dia 07 de novembro de 2002, o mérito da ADIN 1.717-6/DF foi julgado, tendo como Relator o Ilustre Ministro Sydney Sanches, que transcreveu, na fundamentação do seu voto, trecho por ele averbado em sede de cautelar, quando disse que:
"... não me parece possível, a um primeiro exame, em face de nosso ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e punir no que concerne ao exercício de atividades profissionais."
Importante salientar, por oportuno, que antes mesmo do julgamento da referida ADIN, o Supremo Tribunal Federal já tinha enfrentado o tema no Mandado de Segurança n.º 22.643-9-SC, Relator Ministro Moreira Alves, por votação unânime, em que se decidiu que:
"(...) – Os Conselhos Regionais de Medicina, como sucede com o Conselho Federal, são autarquias federais sujeitas à prestação de contas ao Tribunal de Contas da União por força do disposto no inciso II do artigo 71 da atual Constituição."
Cabe destacar trecho do voto condutor do Relator, na passagem onde diz que:
"Esses Conselhos – o Federal e os Regionais – foram, portanto, criados por lei, tendo cada um deles personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira. Ademais, exercem eles a atividade de fiscalização de exercício profissional que, como decorre do disposto nos artigos 5º, XIII, 21, XXIV, e 22, XVI, da Constituição Federal, é atividade tipicamente pública. Por preencherem, pois, os requisitos de autarquia, cada um deles é uma autarquia, embora a Lei que os criou declare que todos, em seu conjunto, constituem uma autarquia, quando, em realidade, pelas características que ela lhes dá, cade um deles é uma autarquia distinta."
Antes disso, o antigo Tribunal Federal de Recursos (TRF) havia reconhecido a natureza jurídica de autarquia federal com relação ao Conselho Regional dos Representantes Comerciais de Brasília (Ministro Moacir Catunda, AI 40.892-DF, AI 40.907-DF, DJU 03.09.1980). O Superior Tribunal de Justiça, ratificando o posicionamento do TRF, editou a Súmula 66, dizendo que Compete à Justiça Federal processar e julgar execução fiscal promovida por conselho de fiscalização profissional, no entendimento de que, sendo autarquias federais, as ações em que são autores ficam afetas à Justiça Federal.
Ora, o desfecho do tema não poderia ser diferente, pois basta um simples cotejo com o Decreto-Lei n.º 200/67, Estatuto da Reforma Administrativa Federal, no seu art. 5º, para verificarmos que os conselhos de fiscalização das profissões liberais se enquadram perfeitamente na forma de autarquias. Segue o artigo:
Art. 5º. Para os fins desta lei, considera-se:
I – Autarquia – o serviço autônomo criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio próprio, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.
Todos os conselhos profissionais são criados por lei, dotando-os de personalidade jurídica. Citem-se, a título de exemplo, os conselhos federais de farmácia e
de medicina, criados respectivamente pelas Leis 3.820/60 e 3.268/57.
As atividades são típicas da Administração Pública. Os conselhos são órgãos delegados do Estado para o exercício da regulamentação e fiscalização das profissões liberais. A delegação é federal tendo em vista que, segundo a Constituição da República, a teor do art. 21, XXIV, compete à União Federal organizar, manter e executar a inspeção do trabalho, atividade típica de Estado que foi objeto de descentralização administrativa,
colocando-a no âmbito da Administração Indireta, a ser executada por autarquia, pessoa jurídica de direito público criada para esse fim.
Além disso, os conselhos de fiscalização são detentores de autonomia administrativa e financeira, característica essencial de uma autarquia, cujo patrimônio, próprio deles, é constituído pela arrecadação de contribuições sociais de interesse das categorias sociais, também chamadas de contribuições parafiscais, tendo nítido caráter tributário. Nesse ensejo, cabe enfatizar que, já que as contribuições possuem natureza tributária, segundo o art. 119 do Código Tributário Nacional, "sujeito ativo titular da obrigação é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento."
Assim, não há arrimo para dúvidas de que os conselhos de fiscalização das profissões liberais têm natureza jurídica de autarquia e, como tal, devem se portar.
A questão de ser uma autarquia especial, sui generis, corporativa ou outra nomenclatura que se queira empregar não desnatura a essência de pessoa jurídica de direito público, que está atrelada aos diversos princípios e normas que regem a Administração Pública.
Há quem defenda, contudo, que os conselhos não seriam autarquias por ausência de supervisão ministerial a consubstanciar a tutela ou controle administrativo dos entes descentralizados pelo ente central.
Acontece que a supervisão ministerial não constitui fator essencial para caracterizar um ente como autarquia. Ora, nos casos de descentralização administrativa, a regra é a autonomia dos entes descentralizados e a exceção é o controle destes últimos pela administração central, somente quando previstos em lei e nos estreitos limites desta.
A supervisão ministerial está prevista no art. 19 do Decreto-lei 200/67.
Como esse controle é uma exceção e está previsto em lei, nada obsta que lei posterior que crie um ente descentralizado deixe de prever tal controle, sem que com isso exclua esse ente da administração indireta ou desfigure sua natureza.
A propósito, o professo CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELO (In: Curso de Direito Administrativo. 14 ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 141), em nota de rodapé de sua obra, quando comenta o controle das autarquias, assim se manifestou:
"’É verdade, entretanto, que como este diploma não tem força jurídica superior a qualquer outra norma de nível legal, a lei que ulteriormente venha a criar uma determinada autarquia pode configurar-lhe um âmbito de liberdade mais ou menos extenso do que o estabelecido no Decreto-lei 200, pois, como é claro, lei posterior que revoga a anterior quando com ela incompatível."
Assim, não há como fugir da condição de autarquia pelo simples fato de não haver supervisão ministerial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante disso, a partir da constatação da natureza jurídica de autarquia federal dos conselhos federais, e tomando-a como premissa primária, as conseqüências jurídicas daí decorrentes ficam afetas ao regime jurídico administrativo, trazendo para os conselhos as mesmas prerrogativas e restrições da administração pública indireta.
Daí em diante, pode-se concluir que esses entes têm as mesmas vantagens e privilégios da administração, mas também têm os mesmos ônus, devendo realizar concurso público para admissão de seu pessoal, seguir as regras do regime jurídico do pessoal que estabelecer, realizar licitação, dentre outros consectários desse regime de caráter publico.
Os conselhos que ainda se portam como entidades privadas deverão se adequar estrutural e funcionalmente para usar a roupagem de autarquia federal, a fim de não perderem a legitimidade de seus atos, pois, se não se conduzirem dessa forma, estarão desrespeitando a própria Constituição.
NOTA
1. Os dispositivos impugnados da Lei 9.649/98 foram o art. 58, caput e os parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º. À exceção do § 3º, considerado prejudicado em face da modificação do texto original da constituição pela Emenda Constitucional n. 19/98, todos os demais foram suspensos.
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