domingo, 24 de fevereiro de 2008

Exame de ordem: purificação de poucos e angústia de muitos

Atahualpa FernandezÓ

Na quase totalidade das vezes em que a OAB publica o resultado dos aprovados em alguma das fases do Exame de Ordem o discurso oficial que varre o País parece ser sempre o mesmo: que os números “ continuam revelando as deficiências do ensino jurídico no preparo dos bacharéis...” ( por exemplo, www.oabsp.org.br, “Destaque Especial” – Exame de Ordem n. 134, OAB/SP). Sem menosprezar a seriedade ou o eventual grau de boas intenções oculto nesse tipo de discurso, estou particularmente convencido de que são inúmeros os equívocos, as limitações e os preconceitos pressupostos nessa maneira simplista e reducionista de apreciar o problema.

Ninguém põe em dúvida que a cultura jurídica passa por um momento deveras delicado, mas insistir com desproporcional veemência no fenômeno das “deficiências” do ensino jurídico não constitui, por si só, razão necessária e suficiente para continuar condenando ao desemprego milhares de Bacharéis que reprovam no mencionado Exame, taxando-lhes (implícita e indiretamente) de desonestos, incultos e incapazes, vítimas inocentes de um modelo de ensino esclerosado e assumidamente ineficiente – e digo “assumidamente” ante a aparente impotência e o silêncio conformista por parte das instituições de ensino apontadas como responsáveis por tais “deficiências”.

Parece até que o objetivo último do Exame de Ordem é dar à sociedade a impressão de que não somente não sabemos educar, senão que sequer sabemos em que consiste educar. Isso para não falar (na linha de Baudrillard) de que se trata de um poderoso instrumento de purificação periódica da própria OAB que não perde tempo em alardear o “escândalo” do elevado índice de reprovação, de maneira parecida ao modo em que o corpo se beneficia de pequenas doses de enfermidade em forma de inoculações. E se entendemos a educação num sentido mais próximo de como a entendia Aristóteles nada menos que 24 séculos atrás, nem as estúpidas distinções entre teoria e prática, nem as lutas acerca de quem dá a última palavra sobre a capacidade e aptidão profissional servem aqui de muita coisa.

O certo é que não se pode negar o fato da presença, aparentemente cada vez mais insistente, de indivíduos que se encontram como flutuando na estrutura social e que povoam seus interstícios sem conseguir um lugar no mercado de trabalho. Essa situação de flutuação, de ausência de lugar, de errante, não deixa de recordar a inquietude e a angústia dos “filhos da deficiência” ante a completa falta de oportunidades de trabalho gerada por um “instrumento de controle” injusto, despropositado e inconstitucional. Esta é a angústia que cria a privação cada vez mais drástica de oportunidades e a consequente (e quase patológica) busca pelos epidêmicos cursinhos preparatórios extra-universitários, periodicamente incrementada e agravada pelo fenômeno de “reprovação em massa” nos Exames de Ordem e que, em certa medida, já começa a acariciar os limites de situações socialmente degradantes.

A que se deve esses números que “continuam revelando as deficiências do ensino jurídico no preparo dos bacharéis”? Cada cidadão interessado por estas coisas tem seu próprio diagnóstico mas é provável que a dispersão coincida em alguns aspectos de notória evidência. Por exemplo, o de que um único exame escrito não parece ser , definitivamente, um instrumento legítimo e fiável para medir a capacidade (ou honestidade) profissional de um Bacharel em Direito, de um cidadão. Segundo, que nenhum sistema aprovado de interação e estrutura social regulado pelo Direito (uma relação jurídica) pode funcionar legitimamente de forma unilateral, onde somente uma das partes tem o “direito de” (no caso, da OAB de exigir um Exame de Ordem sem nenhuma contraprestação específica) e a outra somente o “dever de” (no caso, dos bacharéis de se submeterem ao referido Exame). Fora de um contexto integral de responsabilidades compartidas, qualquer discurso acerca da qualidade da preparação ética e profissional dos Bacharéis em Direito não passa de um conjunto de hipóteses escritas na areia.

Assim que parece haver chegado o momento de lutar contra e eliminar este tipo de prática ou, ao menos, reconfigurá-la, a despeito das boas intenções, dos prejuízos ideológicos, interesses corporativos e/ou políticos em jogo. Ser resiliente a práticas unilaterais e ilegítimas, baixar a guarda do silêncio, aceitar às vezes fazer explosão (para usar a expressão de Catherine Malabou) e ser ativo e não passivo com relação a nossos motivos e eleições (isto é, sujeitos autônomos, na concepção de Harry Frankfurt): isso é o que se deve fazer. É o momento de recordar que existem explosões que não são terroristas, como por exemplo as explosões de indignação.

Talvez se deva voltar a aprender a indignar-se, a rebelar-se contra certa cultura da docilidade, da submissão, da interferência arbitrária, da impotência e do conformismo, enfim, da eliminação de todo conflito justamente agora que vivemos em um estado em que no plano da política já enlouquecemos todos e se manejam cifras de escândalo como se se tratasse de uma troca de figurinhas em uma atividade que não mais ultrapassa sequer o umbral do trivial. Trata-se, ademais, de um compromisso (de luta) incondicional que cabe e deve ser assumido por todos os agentes envolvidos e responsáveis pelo processo de ensino jurídico. Afinal, as práticas que soem prosperar são exatamente as que contribuem a conservar os sistemas que lhes permitem ser transmitidas.

Perguntar-se “o que fazer com o Exame de Ordem?” é, em boa medida e sobretudo, considerar a possibilidade de dizer não a um tipo de “controle” deplorável e a uma política institucional de exploração que parece só saber bazofiar o triunfo do fracasso, apontar culpados e responsáveis , e consagrar o reino de indivíduos obedientes e “incompetentes” que não tem mais mérito que saber baixar a cabeça, conformar-se e voltar a preparar-se para o Exame de Ordem n. 135, 136, 137, 138...

Seja como for, é muito provável que, depois de tudo, todo esse problema resida unicamente no fato de que, como disse certa vez Karl Marx, “os homens fazem sua própria história, mas não sabem que a fazem”.



Ó Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular da Unama/PA e Cesupa/PA;Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado) ; Advogado.

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